A necessidade de recolocação DO problema da alegoria e da interpretação alegórica em Platão Resumo: Tradicionalmente, a questão da alegoria em Platão recebeu de seus intérpretes um tratamento indireto e parcial. Foi tratada como um tema subalterno cujo esclarecimento não pareceu ser de fundamental importância para a compreensão da filosofia platônica. Um exemplo desse procedimento se encontra na tradição francesa de comentário ao problema do mito em Platão, aqui representada por Perceval Frutiger, Jean Pépin e Luc Brisson. Preocupados fundamentalmente com a natureza e o valor do discurso mítico, eles abordaram a questão da alegoria exclusivamente do ponto de vista da interpretação alegórica dos mitos tradicionais. Não se dedicaram a investigar a presença do discurso alegórico em circunstâncias textuais não míticas da obra platônica, tais como nas narrativas apresentadas pelas personagens (Alegoria da Caverna, por exemplo) ou nos próprios enredos literários dos diálogos. Chegaram, assim, a conclusões que, se comparadas à complexidade dos casos platônicos de alegoria, se mostram insustentáveis. Meu objetivo é demonstrar as falhas e as dificuldades dessa tradição de comentário e recolocar a questão da alegoria de um ponto de vista mais amplo. Palavras-chave: Platão; alegoria; mito. O problema da alegoria nos diálogos platônicos não constitui um tema que tenha historicamente chamado a atenção de seus leitores e comentadores. Pelo menos, não a ponto de ser tomado como a questão principal de um estudo pormenorizado. A maior parte dos intérpretes, embora utilize eventualmente esta ou aquela passagem alegórica para iluminar um ou outro aspecto do pensamento de Platão, não apresenta, contudo, uma interpretação mais detalhada sobre o tema. Raras são as vezes que algum comentador se dedica a investigá-lo e esboça uma compreensão clara sobre o papel do discurso alegórico nos diálogos platônicos. Nesses casos, entretanto, a aproximação ao tema se realiza de forma indireta, e a alegoria é investigada em função de outros tópicos da filosofia platônica tais como o problema do discurso mítico. Que isto aconteça é fato absolutamente natural, pois as alegorias se apresentam de forma multifacetada nos diálogos e incidem, em maior ou menor grau, sobre uma diversidade de problemas. A contrapartida é, no entanto, a falta de uma compreensão unitária da questão que resulta, por um lado, em respostas incapazes de articular a multiplicidade dos casos de alegoria e, por outro, em interpretações claudicantes que, apesar de acertos eventuais, podem ser refutadas por uma consideração mais ampla do problema. Meus objetivos são, portanto, articular as múltiplas ocorrências de alegoria na obra platônica demonstrando sua unidade temática e acusar os limites e os equívocos de algumas interpretações que considero unilaterais. A primeira dificuldade com a qual se depara o presente trabalho é conceituar seu objeto de estudo e, assim, delimitar seu campo de investigação. A razão está no fato de que Platão não oferece em nenhuma parte de sua obra uma definição de alegoria. Na verdade, não há no corpus platonicum sequer uma ocorrência do vocábulo grego “?????????” do qual deriva o correspondente homofônico em português. A dificuldade se desdobra então em dois níveis: em primeiro lugar, não há uma definição platônica que pudesse servir de ponto de partida de uma investigação e, em segundo lugar, não há passagem alguma no corpus platonicum que, tendo sido designada como alegórica pelo próprio autor, pudesse então servir para extrair um conceito preliminar de alegoria. A única alternativa que resta aos comentadores de Platão é estabelecer uma definição externa à obra do filósofo e, a partir dela, delimitar o campo de estudo a ser investigado. Alguns intérpretes1 encontraram numa passagem da Moralia (1878, 4) de Plutarco uma maneira de tentar desviar dessa arbitrariedade. Lá o filósofo platônico diz: Estes mitos, alguns comentadores, com o que eles chamavam outrora subentendido (???? ????? µ?? ?????????), e que chamamos agora alegorias (??????????? ?? ??? ????µ?????) torturam e falseiam a interpretação. O adultério de Afrodite e Ares denunciado por Hélio significa que a conjunção dos planetas Marte e Vênus determina naqueles que nascem sob seu signo, o gosto pelo adultério, e que, se o sol, subindo no céu, os surpreende, estes adúlteros não permanecem ocultos. Quando Hera veste-se em honra a Zeus e recorre a um cinto mágico, querem que se trate na realidade de uma purificação do ar que se aproxima do elemento ígneo, como se o poeta não desse ele próprio uma explicação!2 Plutarco identifica que seus contemporâneos chamam pelo nome de ????????? o que os antigos chamavam pelo nome de ??????? e, na sequência, apresenta exemplos de interpretações das figuras divinas de Homero em termos físicos. Ele se refere a uma perspectiva hermenêutica que consistia basicamente em compreender que os poemas homéricos apresentavam explicitamente um significado, constituído por divindades e criaturas fantásticas, que representava simbolicamente uma explicação para os fenômenos físicos. O sentido explícito do poema constituiria assim uma representação do significado implícito. Partindo da identificação de Plutarco, aqueles intérpretes de Platão procuraram nas ocorrências do vocábulo grego “???????” a possibilidade de delimitar um conceito de alegoria e, assim, demarcar o campo para seu estudo. Há, com efeito, três passagens no corpus platonicum em que ocorre o termo “???????” ou um derivado de sua forma verbal “????????”. A primeira delas se encontra no Livro II d’A República (2006, 378d-e) e aparece por ocasião de uma discussão sobre o uso de mitos na educação das crianças. Sócrates afirma: Que Hera foi agrilhoada pelo filho e que Hefesto foi arremessado do alto pelo seu pai, quando ia defender sua mãe que estava sendo agredida, e tantas quantas lutas entre deuses Homero narra em seu poema, tudo isso não deve ser acolhido em nossa cidade, quer tenha sido criado como alegoria [?????????], quer não. É que o jovem não é capaz de distinguir o que é alegoria [???????] e o que não é, mas, quando tem essa idade, o que apreende das opiniões costuma tornar-se indelével e imutável. O termo “???????” é utilizado aqui para caracterizar o tipo de mito que Sócrates censura no Livro II e aparece no contexto de uma eventual objeção a sua tese. O filósofo teme que as narrativas que apresentem os deuses em atos imorais possam fomentar comportamentos reprováveis nas crianças gregas e, por isso, julga melhor afastá-las do processo educacional. Esses mitos, o próprio Sócrates admite, poderiam, no entanto, ser compostos como ????????, isto é, poderiam conter implicitamente um sentido diferente do superficial. Mesmo nesse caso, justifica o filósofo, eles deveriam ser censurados, pois os jovens são incapazes de distinguir o sentido implícito de um relato mítico. A passagem do Livro II utiliza o termo “???????” praticamente no mesmo sentido que Plutarco lhe atribui no trecho supracitado da Moralia. Com ele, Platão designa um conjunto de narrativas míticas, atribui-lhes dois níveis de sentido e alude ao processo de leitura ou interpretação de relatos. A principal diferença entre as duas passagens está na natureza que é atribuída ao conteúdo tácito dos mitos. Enquanto Plutarco se refere à interpretação que vê nos deuses homéricos representações de fenômenos físicos, Platão trata de mitos que representam fenômenos de ordem moral. Aos comentadores que seguiram a pista de Plutarco, a diferença não pareceu, contudo, significativa. Eles entenderam que o platonista designava as duas possibilidades de interpretação com o termo “???????” e que, na perspectiva de oferecer um simples exemplo, havia mencionado apenas uma delas. Compreenderam, portanto, que ???????, em Platão e em Plutarco, designava simplesmente os mitos compostos com dois níveis de sentido. A segunda passagem em que Platão utiliza o vocábulo “????????” está no Livro III d’As Leis (1961, 679c) e não apresenta o termo exatamente com o mesmo sentido que Plutarco lhe atribuiu. Descrevendo os homens que sobreviveram às catástrofes, o ateniense afirma: Então estes homens eram bons, tanto por essas razões quanto por sua simplicidade, como é chamada; pois, sendo simples, quando ouviam coisas ditas boas ou más, eles tomavam o que era dito por pura verdade e acreditavam. Nenhum deles tinha a perspicácia dos homens de hoje para suspeitar (????????) de falsidade, mas aceitavam como verdadeiras as afirmações sobre os deuses e os homens e viviam de acordo com elas. Aqui o termo “????????” designa a capacidade de desconfiar do que é dito a respeito dos deuses e dos homens. Embora a passagem o utilize também para se referir às narrativas míticas, tal como acontece na citação da Moralia, ela não contém, todavia, a sugestão da existência de dois níveis de sentido. O ateniense complementa o verbo “????????” com o termo “??????”, falsidade, e afirma simplesmente que aqueles homens eram incapazes de suspeitar da falsidade dos mitos. O procedimento de interpretação ao qual se refere Plutarco consiste, com efeito, em desconfiar da falsidade de um relato mítico, mas, em segundo lugar, descobrir-lhe uma verdade tácita. Essa ideia de que há nos mitos um sentido implícito verdadeiro não está expressa na passagem d’As Leis e, por essa razão, parece-me apressado relaciona-la às palavras de Plutarco. Não há no texto platônico elementos suficientes para garantir que seu uso de “????????” exprima o sentido de alegoria ou de interpretação alegórica. Finalmente, a terceira ocorrência de um derivado de ???????? no corpus platonicum está no Górgias (2011, 454b-c). Por ocasião de uma consideração metodológica a respeito do desdobramento do diálogo, Sócrates dirige as seguintes palavras ao sofista: SOC: E eu já suspeitava de que dirias que era essa a persuasão e a que concernia, Górgias. Mas para não te surpreenderes se daqui há pouco eu te endereçar novamente uma pergunta semelhante, torno a te perguntar o que parece ser, entretanto, evidente – é o que eu digo: formulo as perguntas em vista de concluir ordenadamente a discussão, e não em vista de ti, mas a fim de que não nos habituemos a antecipar, por meio de suposições (???????????), o que cada um à sua volta tem a dizer. Que tu concluas, como quiseres, a tua parte conforme o argumento! Nesse caso, o sentido de “????????” é consideravelmente diferente daquele que lhe atribuiu Plutarco. Em primeiro lugar, Sócrates e Górgias não discutem qualquer tema que esteja relacionado diretamente às narrativas míticas. Em segundo, não há qualquer sugestão de que Górgias tenha deliberadamente construído um discurso com um sentido implícito. Se algo permaneceu oculto, a recomendação socrática pretende que ele agora seja revelado. E, em terceiro lugar, não há uma caracterização do sentido explícito como falso e do sentido implícito como verdadeiro. A relação entre ambos é de complementação. ???????? é utilizado aqui no simples sentido de ver ou pensar (?????) algo por debaixo (???-). Isso não significa necessariamente que diga respeito aos mitos, que quem se expressa tenha escolhido manter algo velado nem que o explícito seja símbolo do que está implícito. Das três passagens mencionadas, portanto, apenas a primeira contém um uso do termo “???????” perfeitamente harmônico com o sentido que Plutarco lhe atribuiu. A alguns comentadores de Platão, a solitária ocorrência pareceu suficiente para estabelecer um conceito provisório de alegoria e então investigar o corpus platonicum em busca de uma posição mais detalhada do filósofo sobre o tema. O resultado de tal procedimento foi, a meu ver, desastroso, pois, por um lado, atribuiu a Platão teses contraditórias e, por outro, ignorou muitas partes do problema. De um ponto de vista geral, a causa desse equívoco consistiu em descobrir a qualquer custo uma passagem da obra platônica que oferecesse a possibilidade de haurir um conceito de alegoria e, assim, se esquivar da arbitrariedade de cunhá-lo externamente. Com base numa referência quatrocentos anos posterior a Platão, encontrou-se na singular ocorrência do termo “???????” no Livro II d’A República um sinônimo para ?????????. A partir dela, desenvolveu-se um tipo de interpretação que, medida pelos seus resultados, se mostra insuficiente e questionável. Segundo essa linha interpretativa, o Livro II utiliza ???????? para designar os mitos que devem ser interpretados distinguindo um sentido profundo por debaixo de um sentido superficial (Cf. BRISSON, 2000, p. 125). Com efeito, n’A República, Platão admite a existência de dois gêneros de discurso mítico: os que foram compostos como ???????? e os que não foram. Segundo Brisson, a possibilidade de tomar os mitos como alegorias teria surgido por volta do séc. VI a.C. e era relativamente recente no período de Platão. Ela conviveria com outra perspectiva sobre a mitologia muito mais antiga e popular que consistia em crer ou descrer cegamente nos relatos míticos, isto é, consistia em determinar-lhes o valor de verdade sem considerar a possibilidade de existir um sentido oculto. Por oposição, a perspectiva alegórica partiria da concepção de uma falsidade característica do sentido superficial dos mitos e de uma verdade oculta em seu sentido profundo. Ao afirmar a existência de dois gêneros de discurso mítico no Livro II d’A República, Platão admitiria as duas perspectivas de interpretação e destinaria a cada uma delas um dos dois gêneros de mito. A mesma perspectiva ocorre também numa importante passagem do texto do Fedro (2007c, 229c-230a). Respondendo um questionamento de seu jovem interlocutor sobre a veracidade do relato que narra o sequestro da princesa ateniense Oritia pelo deus Bóreas, Sócrates assim se expressa: Se, a exemplo dos sábios, eu não acreditasse, não seria de estranhar. Interpretação sutil da lenda fora dizer que o ímpeto de Bóreas a derrubou dos rochedos próximos, quando ela brincava com Farmaceia, e que as próprias circunstâncias de sua morte deram azo a dizerem que Bóreas a havia raptado. Ou daqui ou da Colina de Ares. Sim, porque há também uma versão que a dá como raptada daquele ponto. E quanto a mim, Fedro, acho muito engenhosas todas essas explicações; porém exigem agudeza de espírito e bastante esforço por parte do hermeneuta, o que não é nada de invejar, visto como depois disso ele seria obrigado a corrigir a forma dos Hipocentauros e mais a da Quimera, para, logo a seguir, ver-se abarbado com uma turba de Górgonas e de Pégasos, além de uma multidão inumerável de seres monstruosos e inconcebíveis. Perderia um tempo enorme o incrédulo que, armado apenas da vulgar sabedoria, se impusesse a tarefa de deixar aceitáveis todos esses monstros compósitos. A primeira frase de Sócrates expressa a atitude mais tradicional diante dos relatos míticos. Fedro lhe pergunta se crê no mito de Oritia e ele responde que poderia, a exemplo dos sábios, não acreditar. Trata-se aqui simplesmente de crer ou não no sentido da narrativa. A partir da segunda frase, contudo, Sócrates considera a possibilidade de tratar o mito como uma alegoria e sugere qual seria seu eventual sentido tácito. A verdade por detrás do relato consistiria na queda da princesa dos rochedos que fora causada pelo ímpeto do vento norte (Bóreas). Tal como no Livro II d’A República, o texto do Fedro admite as duas atitudes possíveis diante de relatos míticos e as aplica à narrativa sobre Oritia. Um pouco adiante, quando critica os que se dispõem a realizar a interpretação alegórica, Sócrates menciona os mitos que serão dificilmente submetidos a essa perspectiva interpretativa (Hipocentauros, Quimera, Górgonas, Pégasos, etc.). Poder-se-ia dizer que tais casos pertenceriam àquele segundo gênero de discurso mítico, o não alegórico, e, por isso, seria tão difícil e desaconselhável interpretá-los alegoricamente. Platão refletiria no Fedro, portanto, as mesmas ideias sobre mitos e alegorias que havia apresentado no Livro II d’A República. Além disso, as duas passagens expressam um mesmo parecer negativo de Platão sobre a interpretação alegórica dos mitos. No Livro II, o filósofo rejeita o uso de mitos alegóricos na educação dos jovens e, no Fedro, recusa-se a praticar a interpretação alegórica em sua filosofia. Muitos comentadores3 compreenderam o sentido negativo dos dois trechos como expressão de uma crítica geral e de uma rejeição completa por parte de Platão dos procedimentos de interpretação alegórica da mitologia. Brisson (2000, p. 126-127), no entanto, notou os limites dos argumentos utilizados pelo filósofo e mostrou que eles não implicam uma rejeição cabal. No Livro II d’A República, a recusa de Platão está condicionada pelo tema da educação das crianças. Os mitos alegóricos devem ser rejeitados porque, diz Platão (2006, 378e), “o jovem não sabe distinguir o que é uma alegoria e o que não é [...]” e, consequentemente, oferecer-lhe narrativas dessa natureza implica no risco de perverter-lhe o caráter. Não se trata, portanto, de uma rejeição definitiva e é legítimo imaginar que, em circunstâncias diferentes, a saber, no trato com os adultos, Platão aceitaria sem restrições o seu uso. No caso do Fedro, a rejeição platônica está condicionada pela enorme extensão da tarefa de interpretar alegoricamente toda a mitologia. O filósofo afirma (2007c, 229e): “perderia um tempo enorme o incrédulo que, armado apenas da vulgar sabedoria, se impusesse a tarefa de deixar aceitáveis todos esses monstros compósitos”. A consequência negativa apontada por Platão incide unicamente sobre aquele que pretende interpretar toda a mitologia de forma alegórica. Se não fosse esse o caso, ela não se realizaria. Em outras palavras, se se dispusesse a alegorizar apenas uma parte da mitologia, o incrédulo não perderia um tempo enorme. Tal como no Livro II d’A República, o Fedro não apresenta uma rejeição completa da interpretação alegórica e mantém aberta a possibilidade de que, em circunstâncias diferentes, ela se tornasse interessante ou, até mesmo, necessária. Apesar de notar a limitação dos argumentos platônicos, Brisson concorda com a tese de que o filósofo rejeita definitivamente a alegorização dos mitos tradicionais. Sua justificativa se funda na caracterização do discurso mítico que desenvolveu nas partes precedentes de sua obra. Ela pode ser resumida da seguinte maneira. A filosofia platônica, diz Brisson, admite a existência de dois tipos de discurso: o ????? e o ?????. A diferença entre eles se estabelece no nível dos objetos aos quais podem se referir: o ????? trata de objetos que são acessíveis ao intelecto ou aos sentidos, ao passo que o ?????, por tratar de eventos do passado distante e de criaturas sobrenaturais, se refere a objetos inacessíveis tanto por uma faculdade quanto pela outra. Essa diferença se manifesta também na relação que as duas formas de discurso estabelecem com a questão da verdade: o ????? é falseável, uma vez que pode ser contraposto à apreensão intelectual ou sensível de seus objetos. O ?????, por outro lado, é inverificável, pois não há apreensão dos objetos com a qual ele pudesse ser confrontado. Quem se propõe a interpretar alegoricamente um mito, diz Brisson, pressupõe que ele guarda uma verdade oculta e, dessa forma, ignora o seu caráter inverificável e as prerrogativas do ????? na busca da verdade. “Em vez disso, deve-se procurar a verdade lá onde ela se encontra, isto é, no discurso filosófico [...]” (ibidem, p. 126). Segundo o comentador, portanto, Platão, de fato, rejeita a interpretação alegórica da mitologia, pois ela atribui aos mitos o que constitui a prerrogativa do discurso filosófico, a saber, a possibilidade conter a verdade. O resultado da caracterização da alegoria a partir do uso do termo “???????” é, portanto, a constatação de uma rejeição por parte de Platão da prática de busca de um sentido oculto por detrás dos relatos míticos. As passagens do Livro II d’A República e do Fedro parecem, de fato, justificá-lo. Há, no entanto, outros trechos do corpus platonicum que também tratam da interpretação alegórica dos mitos e que, se forem brevemente analisados, contradizem a conclusão a que chegaram os seguidores da perspectiva exposta acima. Eles mostram que Platão não é tão radical e excludente em sua crítica à interpretação alegórica e a admite em, pelo menos, duas passagens de sua obra. No início do Livro II d’A República (359c-360b), Glauco relata um mito no qual seu protagonista, Giges, encontra um anel mágico, cujo poder é tornar seu possuidor invisível, e o utiliza para assassinar o rei da Lídia. O jovem interpreta o relato em conformidade à tese sobre a justiça que Trasímaco defendia no Livro I: “[...] ninguém é justo de bom grado, mas [apenas] sob coerção [...]” (2006, 360c). Conforme corretamente notou Frutiger (1930, p. 182), o mito de Giges é apresentado de forma alegórica, pois Glauco vê por detrás do relato sobre o assassinato do rei um juízo sobre a natureza humana em relação à justiça. A passagem consiste, portanto, num uso platônico de procedimentos de interpretação alegórica e põe, consequentemente, em xeque a tese segundo a qual Platão teria rejeitado toda prática de alegorização de mitos. O comentador francês (1930, p. 182), ciente da dificuldade gerada pela passagem, procurou enfraquecer o seu sentido atentando para o fato de que a exegese do mito de Giges não é realizada pelo principal porta-voz de Platão, Sócrates, e nem expressa, se comparada aos outros diálogos, uma opinião do filósofo sobre a justiça. Dessa forma, pensa Frutiger, ela não é verdadeiramente um uso platônico de procedimentos alegóricos mas apenas o registro de uma das formas que os adversários teóricos de Platão utilizavam para expor suas teses. O Livro II apresentaria apenas um exemplo dos argumentos empregados pelos sofistas e não implicaria, na opinião de Frutiger, num concordância de Platão com tais procedimentos. A solução do comentador não pode, contudo, ser aplicada a uma situação análoga que se encontra no texto do Teeteto (152e). Nesse caso, é o próprio Sócrates quem cita os versos 201 e 302 do Canto XIV da Ilíada (2002), “pai de todos os deuses eternos, o Oceano, e a mãe Tétis”, e o interpreta segundo uma ideia compartilhada, de seu ponto de vista, por Heráclito, Protágoras e Empédocles. O sentido oculto nos versos de Homero, afirma o filósofo, é a tese de que todas as coisas são produto do fluxo e do movimento. Diferente do mito de Giges, o Teeteto apresenta o próprio Sócrates interpretando um verso da poesia mítica. Frutiger poderia argumentar que, nesse caso, também não se trata da apresentação de uma opinião que pudesse ser atribuída a Platão. Porém, a pergunta que Sócrates dirige a Teeteto na sequência, se ele concorda ou não com a interpretação dos versos homéricos, e a caracterização do poeta como general do exército que defende essa tese, parece-me expressar a concordância socrática não com a tese do fluxo mas com a interpretação alegórica do mito. Em outras palavras, Sócrates sanciona a alegorização e crê que a tese do fluxo é o sentido oculto nas palavras de Homero. Se os trechos que contém o Mito de Giges e a exegese dos versos de Homero forem somados aos limites encontrados nas argumentações que constam no Livro II d’A República e no Fedro, surgem muitos obstáculos à tese defendida por Brisson, Frutiger e tantos outros. Por um lado, Platão jamais criticou a interpretação alegórica enquanto tal mas apenas sua ocorrência em circunstâncias específicas (na educação dos jovens e com a intenção de interpretar toda mitologia). Por outro lado, ele a utiliza pelo menos em duas passagens de sua obra e não expressa nessas ocasiões qualquer crítica ou ressalva em relação ao seu uso. Diante disso, atribuir-lhe uma rejeição dos procedimentos de alegorização da mitologia parece-me uma tese insustentável e exige, por consequência, uma recolocação do problema. O principal equívoco das interpretações tradicionais da questão da alegoria se encontra, a meu ver, em seu ponto de partida. Ao utilizar a passagem supracitada da Moralia de Plutarco e definir o conceito de alegoria a partir do uso do termo “???????” no Livro II, os comentadores o cunharam nos estreitos limites do problema do mito e, assim, comprometeram todo desenvolvimento ulterior da questão. Eles não consideraram uma série de outras narrativas platônicas que apresentam a mesma estrutura de um nível superficial de sentido e de um nível profundo, mas que não se submetem à caracterização dos mitos tradicionais. É o caso, por exemplo, do trecho inicial do Livro VII d’A República (514a-517a), conhecido pelos leitores de Platão como a Alegoria da Caverna. Sem sombra de dúvida, ele constitui um relato que possui dois níveis de sentido. Sócrates o indica claramente em três oportunidades. A primeira se encontra logo no início quando o narrador pede a seu interlocutor que compare “[...] nossa natureza, no que se refere à educação ou à ausência de educação, com uma experiência como esta” (PLATÃO, 2006, 514a). O que se segue é um relato sobre prisioneiros acorrentados de tal forma numa caverna que são obrigados desde a infância a contemplar apenas as sombras dos objetos projetadas numa parede. Segundo a exortação socrática, Glauco deve reconhecer por detrás da singular história um discurso sobre a educação e sobre a ausência de educação. Estranhando a comparação e atestando a dificuldade de compreensão, o jovem afirma (2006, 515a): “Estranho é o quadro que descreves, […] e estranhos também os prisioneiros...”. E Sócrates lhe responde, reiterando a existência de um sentido implícito: “[eles são] semelhantes a nós...”. Finalmente, quando o relato é concluído, o protagonista confirma pela terceira vez a existência de um sentido oculto, identificando alguns de seus elementos superficiais, a subida do prisioneiro até o alto e a figura do Sol, por exemplo, com temas relacionados à educação, a ascensão da alma até o mundo inteligível e a ideia do Bem (2006, 517b). A narrativa contém claramente, portanto, dois níveis de sentido. Por outro lado, ela não apresenta as características que os intérpretes de Platão comumente atribuem ao discurso mítico. Seu conteúdo não diz respeito a eventos ocorridos num passado distante, a acontecimentos relacionados às divindades nem a seres humanos em situações extraordinárias.4 A forma, por sua vez, não apresenta qualquer referência à transmissão e à conservação oral nem qualquer relação com a música e o enunciado poético.5 A Alegoria da Caverna não pode, consequentemente, ser considerada mítica. Definido a partir do termo “???????”, o conceito de alegoria não abarca o trecho do Livro VII e, assim, desencarrega os comentadores de considerá-lo em suas investigações sobre o tema da interpretação alegórica. Alguns deles,6 mantendo-se rigorosamente fiéis ao conceito estabelecido, nem chegaram a considerar o problema da relação entre passagens como a Alegoria da Caverna e a interpretação dos relatos míticos. Ignoraram trechos como o do Livro VII e não suspeitaram que eles pudessem interferir na discussão. Pépin pareceu, por sua vez, notar a questão. Ele sugeriu que há no pensamento platônico uma antinomia “[...] entre o apego prático de Platão pela expressão mítico-alegórica e sua condenação da alegoria dos poetas [...]” (1976, p. 119). O comentador, no entanto, procurou ineficazmente escapar da questão lançando mão das críticas a Homero presentes no Livro X d’A República. Platão, diz Pépin (ibidem, p. 120), defende (2006, 599b-601b) que Homero não possui qualquer conhecimento ou ensinamento e, por isso, uma interpretação alegórica “[...] não poderia descobrir uma mensagem doutrinária em seus poemas a qual, por definição, está ausente [...]”. Platão rejeita apenas a interpretação alegórica de Homero, diz Pépin, pois o poeta não possui qualquer doutrina que pudesse ser eventualmente veiculada na forma de alegoria. A solução do comentador é, portanto, vincular o parecer negativo de Platão sobre a interpretação alegórica à consideração geral sobre a poesia homérica e, assim, salvaguardar um espaço no corpus platonicum para um uso positivo do discurso alegórico. Ora, a passagem supracitada do Teeteto (152e) prova justamente o contrário. Platão atribui a Homero uma doutrina, “todas as coisas são produto do fluxo e do movimento”, aproxima-a das perspectivas filosóficas de Heráclito, Empédocles e Protágoras e a interpreta como o sentido oculto de um dos versos da Ilíada. Limitar a crítica platônica à interpretação alegórica à exegese dos versos homéricos é, portanto, inaceitável. Antes de Pépin, Frutiger (1930, p. 181) já havia defendido uma tese muito semelhante. Em seu Les Mythes de Platon, ele afirma que o filósofo desaprova a interpretação alegórica dos mitos, sobretudo aquela que se dirige à poesia de Homero. Embora tenha ignorado, tal como Pépin, a passagem do Teeteto e, dessa forma, tenha incorrido no mesmo erro, ele deu um passo a frente ao distinguir o discurso alegórico do discurso mítico. Frutiger vislumbrou, assim, a possibilidade de investigar o problema da alegoria enquanto tal, apesar de não ter seguido esse caminho em sua obra. A distinção entre alegoria e mito, para Frutiger, se divide em três pontos. Em primeiro lugar (1930, p. 102), a alegoria tem por objeto um estado, ao passo que o discurso mítico trata de ações ou de uma sucessão de eventos. Em segundo lugar, o discurso alegórico está imbuído de um caráter geral e o mito de um caráter particular. E, por fim, os dois se diferenciam tal como a comparação e a metáfora: a alegoria apresenta explicitamente seu significado e o mito o mantém implícito. O próprio Frutiger percebeu que as diferenças entre o mito e a alegoria que encontrou não são tão radicais assim7 e admite que os mitos, em Platão, são concebidos em sua maior parte de forma alegórica. O que ele parece não notar é que o inverso também é verdadeiro: as alegorias que ele considera puras apresentam as mesmas características que ele atribui ao discurso mítico. A passagem do Livro VII, por exemplo, também é uma descrição de eventos. Trata-se de um prisioneiro que se liberta dos grilhões, que caminha em direção à saída da caverna, que adapta sua visão à luminosidade, que retorna ao interior da morada subterrânea, que exorta seus antigos companheiros à libertação, etc. No que diz respeito à segunda diferença, se Frutiger atribui o caráter geral ao sentido interno da alegoria, não vejo como o trecho do Livro VII difere do mito de Giges no Livro II, pois ambos contêm juízos sobre o homem em geral. O primeiro no que tange o conhecimento e a educação e o segundo no que tange a justiça. Se ele atribui, como parece ser o caso,8 o caráter geral ao sentido superficial da alegoria, não vejo como diferenciar o trecho do Livro VII do relato sobre a parelha de cavalos alados no Fedro (2007c, 246a-250c), que Frutiger considera um mito e não uma alegoria. Ela também trata de uma parelha de cavalos anônima e desprovida de individualidade. E, finalmente, tanto o mito de Giges quanto o da parelha de cavalos alados não ocultam, mas apresentam seu significado. E, assim, não diferem em nada da alegoria da caverna. Apesar da insuficiência de seus argumentos, Frutiger teve a sagacidade de perceber que o tema da alegoria não se esgota na consideração do problema da interpretação alegórica dos mitos tradicionais. E, portanto, mesmo que Pépin e ele estivessem certos ao relacionar as considerações negativas do Livro II e do Fedro exclusivamente à interpretação de Homero, o que entra claramente em choque com a passagem do Teeteto, seria preciso ainda investigar e explicar o uso do discurso alegórico em circunstâncias não míticas, tal como no trecho inicial do Livro VII. Esta é, então, a mudança de abordagem que proponho para a investigação do problema da alegoria: ao invés de considerar o discurso alegórico nos estreitos limites da questão do mito, é mister examiná-lo em si mesmo. O primeiro passo é, por conseguinte, abandonar aquela conceituação provisória de alegoria, uma vez que ela leva a uma abordagem restrita do problema, e buscar outro conceito que seja suficientemente amplo para incluir a totalidade da experiência alegórica na obra platônica. A saída mais simples e segura, a meu ver, consiste simplesmente em retirar do conceito a determinação que implicava nos problemas expostos acima. Com efeito, o que levou os comentadores de Platão ao erro foi justamente a delimitação do discurso alegórico pela questão do mito. Sem ela, alegoria significa tão só a forma de discurso que apresenta dois níveis de sentido, um superficial e outro profundo. Assim simplificado, o conceito encontra amplo respaldo nas investigações que a antiguidade greco-romana lhe dedicou. Conforme notou Hansen (2006, p. 07), os antigos não se diferenciavam consideravelmente em suas abordagens sobre o discurso alegórico. Quintiliano (1922, VIII, VI, 44), por exemplo, dizia: “Alegoria, que em latim se traduz por inversio, apresenta uma coisa em palavras e outra em significado [...]”. Ele a compreendia a partir do conceito geral de tropo, “a alteração artística de uma palavra ou frase de seu significado próprio para outro” (1922, 1), e, mais especificamente, a partir do conceito de metáfora, o tropo que se dá por relação de semelhança entre os sentidos figurado e próprio. A alegoria, dizia Quintiliano (1922, 44), nada mais é que uma série de metáforas. Cícero (1867, 27), em perfeita sintonia, já afirmava antes dele: “a metáfora [...] transporta, por semelhança, uma expressão de um significado para outro [...]. Quando muitas metáforas se sucedem, o discurso se torna diferente: é o que os Gregos chamam de alegoria”. Caracterizado simplesmente a partir da ideia de dois níveis de sentido, o conceito retórico de alegoria engloba tanto a experiência de interpretação dos mitos tradicionais quanto as alegorias não míticas utilizadas por Platão. Nesse sentido, ele não incide na mesma dificuldade que incidia o conceito de alegoria elaborado a partir do uso do termo “???????” no Livro II. E atende, dessa maneira, a exigência de amplitude conceitual exposta acima. Como ponto de partida de uma nova investigação a respeito do uso do discurso alegórico na obra de Platão, o conceito retórico de alegoria permite, em primeiro lugar, realizar uma seleção diferente do material a ser analisado e, em segundo lugar, explorar o tema de um modo diverso do tradicional. Meu objetivo futuro será justamente perfazer uma nova análise comparativa das passagens do corpus que contêm alegorias e reavaliar o estatuto do discurso alegórico na filosofia platônica. referências BRISSON, L. How philosophers saved myths: allegorical interpretation and classical mythology. Tradução de Catherine Tihanyi. 1ª. Edição. Chicago: The University of Chicago Press, 2008. _________. Plato the myth maker. Tradução de Gerard Naddaf. 1ª. Edição. Chicago: The University of Chicago Press, 2000. CASETANO, G. Paradigmas da Verdade em Platão. Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina. 1ª. Edição. São Paulo: Edições Loyola, 2010. CÍCERO. Letters to Atticus. Tradução de E. O.Winstedt. 1ª. 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